quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Outro dia raso

Outro dia raso. Esqueceu de verificar o horário ao acordar: pouco lhe importava as horas, mas percebeu que era cedo, o céu ainda estava cinza e o vento gelado. Debruçou-se sobre o parapeito da janela e observou o movimento do início do dia. Um carro da polícia atraía um grupo de pessoas que transformava o cenário corriqueiro. Divisou uma cabeça deitada de lado que caía de uma fenda da aglomeração.
- Pobre homem, fora atropelado.
O caso lhe agitava a manhã, lha deixava estranha e ligeiramente agradável. O acidente atrapalhava o trânsito que aos pouco ganhava um volume incomum de carros. Dos carros mais distantes começaram a gritar algumas buzinas; não sabiam elas que um corpo jazia estirado mais a frente. O grupo de pessoas permanecia imóvel contornando o acidentado.
- O que desejariam elas... Entretenimento. - Reconheceu o soar distante de uma sirene; uma ambulância corria de longe. - Estes desocupados deviam abrir espaço para que se prestassem os primeiros-socorros – ocorreu-lhe. Subiu-lhe ligeiramente o sangue, pensou em gritar algo aos que atrapalhavam o socorro da vítima, mas acalmou-se, estava distante demais para se fazer ouvir, preferiu afastar-se, fechar a janela, a manhã era fria.

Fitou as paredes do apartamento. Uma a uma, sem ânimo, automaticamente. Alguns móveis e objetos desalinhados, sem brilho, davam ao aposento um aspecto abandonado. Pensou em dedicar parte do dia à arrumação do quarto, mas desistiu logo da idéia. Quando se permite a alguém qualquer possibilidade acaba o indivíduo por não fazer nada já que qualquer escolha tende a encurtar o leque de alternativas oferecido. Foi até sua mesa de trabalho; sem sentar, com a poupa das mãos apoiadas sobre a superfície da mesa, os braços esticados e os ombros alongados para frente, organizou mentalmente sua manhã de estudos: adivinhou onde se encontravam os livros de que necessitaria, conferiu a carga da caneta, definiu a seqüência daquilo que estudaria, mas tratou de desviar a atenção, ainda não era hora de ali se reter. Batia-lhe alguma angústia. Suspirou fundo e foi até a cozinha preparar algo. O hábito se encarregaria de organizar as coisas, de acalmar-lhe o dia; a idéia lhe trouxe conforto. Encheu a chaleira d’água. Serviu-se de duas fatias de pão e preparou o café. Comeu em pé. Olhou com certa repugnância os pratos empilhados na prateleira, havia descaso na arrumação da louça; alguns guardanapos empoeirados e amassados dividiam em desalinho os pratos maiores dos menores, os pratos escapavam do eixo, cada qual para um lado, como se quisessem saltar para fora. Um raio espesso de luz irrompeu contra a poltrona desviando-lhe a atenção. Inundada de sol era ela o espaço mais quente da casa: convidava-lhe a leitura. Acabou por reordenar a seqüência do dia. Deixou a mesa à espera: teria tempo mais tarde. Acomodou-se na poltrona, inclinou-se para a direita de forma a aproveitar o calor que rompia a penumbra do apartamento; escolheu um livro que havia recebido na véspera, uma nova edição de uma obra já conhecida - interessava-se em analisar as alterações de uma edição para outra. Alguém na porta, duas batidas de tal forma abafadas pelo burburinho da rua que tiveram que se repetir para que se confirmassem. A camareira lhe trazia uma carta. Desconfiou imediatamente de seu conteúdo. Voltou para a poltrona, mas o conteúdo que a carta trazia não lhe permitiu aproveitar o prazer que o sol insinuara.

Poucas linhas destruíam o projeto dos últimos seis meses. Demorou alguns instantes para alcançar o que lhe legava a mensagem. Não havia mais motivo algum para continuar: a editora que o havia contratado não mais precisaria de seu livro. Um livro cuja história lhe exigira, seis meses antes, uma difícil rescisão. Renunciou então a seus planos de vida e passara a viver distante, noutra cidade. Na época tal decisão parecia por fim à dura rotina que construíra com a esposa, ao tormento que lhe era conviver com as desgraças de sua família, ao trabalho tortuoso e execrável que mantinha por conveniência, parecia salvar-lhe. Durante as primeiras semanas distante da mulher percebera o equívoco que cometera. Como lhe foi difícil estar afastado dela. Desde sua decisão tampouco havia meios para retornar. Abandonara a esposa, suas novas responsabilidades não deixavam espaço para ela: fechou as portas do passado e sobre ele depositou pedras irremovíveis. Certo dia um telefonema botava fim a relação: sua então esposa dizia estar apaixonada por outro, por alguém que não permitiu a ela sequer chorar a falta do marido, alguém que agora lha ocupava inteiramente. Ela fora intensa e sincera, também nada podia fazer para poupá-lo da dor. Melhor assim, pensava irremediavelmente, teria sido terrível receber clemência da mulher que ele próprio abandonou.

Já nas primeiras semanas de sua campanha os dias tornaram-se duros e longos. A produção de seu texto lhe era um exercício custoso, débil, revelava-se gradativamente um produto frágil e vazio. Agarrou-se à rotina, enfermeira habilidosa, e a ela confiou o terror dos dias. Não obstante esta carta agora lhe jogava no chão, num solo liso e escuro, sem apoios com que contar. Olhou seu rosto no espelho e sorriu aturdido. Deu passos firmes até o telefone, levantou o gancho e procurou a esposa. No primeiro soluço do telefone desligou. Voltou para a mesa, apanhou sua carteira e arrancou o casaco que cobria o encosto da cadeira vestindo-se enquanto já ganhava a rua.

O frio já não o incomodava, embora fosse responsável pelo movimento escasso de pedestres que preferiram o calor de suas casas ao frio que uivava ali fora. Não lhe corria lágrima alguma, mas algo lhe engasgava e atrapalhava seguidamente a respiração. Aspirava com muita força o ar gelado do dia. Sentia a garganta seca e fria, enquanto que as pernas aqueciam-se em passadas nervosas. Avançava por entre as quadras, percorreu um, dois bairros, até que não pode mais caminhar. Adivinhou um boteco ao lado de uma pequena oficina mecânica – uma pequena placa com letras descascadas lhe confirmava. As mesas estavam vagas, dois funcionários, sem pressa alguma, faziam a limpeza da noite anterior. Sentou-se próximo do balcão, numa mesa para duas pessoas, e chamou por alguém. Trouxeram-lhe uma lata de cerveja. Tragou de um gole. Os primeiros clientes chegaram ao boteco quando o relógio já marcava doze horas. O lugar rapidamente ficou cheio, mas ele permaneceu indiferente à multidão. Ocorria-lhe um universo de reflexões, todas breves, informes, desconectadas, jamais poderia fazer-lhes uso. Acabou atendo-se, sem saber por que, às que lhe traziam, qual um analgésico virtuoso, o sorriso e o perdão da esposa. Agarrou-se à imagem da mulher e, apoiado nela, voltou para casa.

O dia levantara definitivamente; o ar era diferente daquele que o alimentou quando saía, pela manhã, porta a fora: o vento acalmava-se em brisa, o frio intenso tornara-se morno. E as idéias pareciam se encontrar umas às outras, transformavam-se em planos. Diziam-lhe elas que o retorno lhe era a única opção, que não havia nisso embaraço algum, que um homem erra, perde a cabeça, e que a dignidade está em se defender aquilo que se ama, haja o que houver. Quase em frente ao seu prédio, um edifício amarelado, de cujas janelas caíam espessas tranças de samambaias, de diversas tonalidades de verde e amarelo, resolveu: descansar e partir ao amanhecer. Enquanto atravessa a rua e descobria a presença de outros matizes destacando-se das madeixas das plantas um carro lhe apanhou violentamente as pernas. Girou duas vezes antes de se desmantelar próximo ao meio fio. Alguns gritos vinham borrar o silêncio. Um grupo de pessoas lhe rodeava, um carro da polícia se aproximou, uma ambulância gritava de longe. Imaginou que estaria atrapalhando o trânsito, mas não pode se mover. Faz frio ali fora, pensei.