quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O espelho de Odone

Marcavam vinte e duas horas, conferi no pulso. Decidi que era tarde. Fui ao balcão da lancheria e gritei pela conta. Como se a conta não viesse prendi uma nota de vinte sob o cinzeiro de vidro e corri para fora. A noite era aprazível, mas quando ventava tornava-se quase insuportável. O ar era quente e estranho. Meados de junho e o frio sequer chegara. Notava que as estações do ano já não nos serviam como indicadores de nada; houve no último verão dias frios, neste inverno sobravam os dias quentes. A rua estava cheia de gente. Homens e mulheres espalhavam-se nos postes, encostavam-se em muros, reuniam-se em rodas e bebiam; alguns cachorros erravam por sobre as calçadas, atravessavam despreocupadamente as ruas, não temiam os carros ou qualquer outro perigo iminente; pensei ser difícil caminhar por entre uma multidão de bêbados: nunca se sabe para onde vão se deslocar, e quando se movimentam o fazem inesperadamente, de modo abrupto, podem nos acertar. Optei por caminhar na rua, próximo ao meio-fio; havia menos carros do que gente e os carros não me pareciam alucinados.

Ao cruzar a frente de um mercado, que servia de bar depois do horário comercial, vi que Odone estava estirado sobre o balcão. Mantinha-se erguido graças ao balcão que lhe servia de encosto, e bravejava, com os braços, qualquer coisa contra o garçom. Conheci Odone num dia de um antigo verão, em que o calor ainda preponderava na estação. Eu estudava numa grande instituição universitária, estava no último semestre da faculdade e contava 22 anos; sonhava ainda com uma carreira exemplar. Desde lá passaram-se doze anos e não entendo como uma carreira possa ser exemplar... A aula recém começara e houve um arranca-rabo brabo entre o professor e um aluno. Miguel, o aluno, não percebera que a aula havia iniciado e concorria com o professor em tom e intensidade de voz. ‘Não percebeu que aula começou?’, disse o professor para o aluno. Miguel, ainda sem saber do alerta, soltou uma gargalhada imensa ao colega sentado a seu lado, com quem se ocupava. Uma gargalhada que ofuscou a advertência do professor o obrigando a reproduzi-la, agora num som quase gutural, mais calmo, intenso e colérico que o utilizado pela primeira vez. Senhor, respondia Miguel ainda com um sorriso pastoso no rosto, sugiro que antes de começar a aula avise que estás para começá-la. Sugiro que não assista mais às minhas aulas, revidou, agora com mais suavidade e de modo consciencioso, o professor. Ah, suspirou alto Miguel, agora sou eu o culpado pelo senhor falar baixo e não ocupar a atenção da turma? O rosto do professor se transtornou e seus olhos ganharam uma escuridão e um peso terríveis. Sua expressão já seria suficiente para que o aluno fustigado se retirasse, mas, mesmo assim, caminhou para Miguel agarrou-lhe a orelha com violência e o arrastou para fora da sala de aula, sem dizer mais palavra. O aluno, em cujo rosto contorcido estampava-se terror, jamais retornou à sala e evitou, qual um alcoólatra que em tratamento evita outros que bebem, qualquer proximidade com o professor. O professor era Odone, como já se deve prever.

Entrei no bar e sentei-me ao balcão. Como em muitos bares voava fumaça sobre a cabeça dos clientes. Havia um som ambiente que não pude distinguir. As vozes preenchiam todos os cantos do recinto, altas e surdas. Pedi ao balconista um chope que me foi servido instantaneamente, com muito colarinho dentro e fora do copo. O balconista puxou o pano que trazia sobre o ombro e enxugou o excesso de espuma que derramava do copo. Em poucos segundos me foi trazido um guardanapo que amparou o copo e preparou o trago definitivamente. Sequei o copo em dois ou três goles, sem olhar para Odone, que se calara por alguns instantes, ainda debruçado sobre o balcão. Pedi por outro copo. E outro. Depois de três copos me senti melhor para abordá-lo.

- Nada bem, meu amigo – disse-lhe. Ergueu os olhos para mim, mas não pode reconhecer-me. Ele bebia uísque misturado com alguma coisa, talvez fosse apenas o gelo transformado em água, ou algo parecido. Voltou os olhos para o copo e secou-lhe sem muita dificuldade. Levantou como se algo esquecido, de grande importância e urgência, voltasse-lhe à cabeça. Recuou do balcão em marcha à ré e saiu sem pagar a conta, o que me fez entender que era um cliente antigo e que em breve retornaria ao bar para acertar o que pendurava. Preocupou-me o estado em que Odone estava: mal se mantinha em pé. Pedi por uma última lata de cerveja, paguei a conta com meus últimos trocados e o segui, cuidando para não ser visto. Odone, de cabeça baixa e mole, subia os degraus que levavam até a entrada de seu edifício, sem olhar para o caminho, sem ver nada, automática e predestinadamente. Algum porteiro lhe segurava a porta com bastante solicitude. Um sujeito baixo e risonho que vestia uma camisa de manga curta azul, própria da profissão, que a usava aberta quase que até o umbigo sobre uma regata branca. O sujeito fechou a porta, tirou um rádio de um bolso e um maço de cigarros do outro. Acendeu-o com muita habilidade e sentou-se no muro de uma floreira abarrotada de hortênsias. Sentei-me num banco de onde pude perceber uma luz acender a janela de um apartamento do primeiro andar. Em poucos segundos todo o apartamento iluminou-se e não mais voltou a escurecer; ficou acesso enquanto terminava de enxugar minha lata de cerveja, tempo o bastante para Odone cair no sono, supus.

Não houve meios para ir ao bar nos próximos dias; ocupava-me a correção de alguns textos aos quais não conseguia dedicar-me totalmente, lhes dava meu tempo, mas não minha atenção. Levei esses dias como pude, como que arrastado pela correnteza artificial de uma piscina circular. Interessava-me, sem saber o porquê, o abandono que pude ver estampado no rosto de Odone. Esforcei-me em manter afastada tal preocupação, mas voltava a ela obstinadamente. Uma pergunta concorria por minha atenção: o que me fazia atentar para o caso daquele sujeito? Que se danasse Odone! Um cara arruinado por quem não me importava em nada. Não achei resposta alguma.

Passaram-se duas semanas. Finalizava a correção de um texto longo, um texto mal escrito que não precisava de uma correção, precisava ser reescrito. Eram cinco da tarde, havia tempo para corrigir mais um texto, desde que fosse curto. Depois preocuparia-me com o jantar. Examinei a pilha de impressos que aguardavam minha correção. Textos diversos sobre política, culinária, futebol. Eu trabalhava como uma espécie de corretor para um folhetim que se distribuía gratuitamente para a comunidade local. Nunca houve alguém que se encarregasse de meu trabalho antes de tê-lo assumido; fui contratado como estagiário para um cargo inexistente em cuja mesa aglomeravam-se pilhas de textos mal escritos, inacabados e preguiçosos. Folhei alguns dos textos, mas não consegui ânimo para dar-lhes nenhuma energia sequer. Deixei sobre eles um peso de vidro e saí, prepararia o jantar na volta.

Ainda não havia escurecido definitivamente quando entrei no bar em que havia encontrado Odone. Um casal sentado à entrada do recinto repartia um prato de algo que um dia foi um filé com fritas. Dois homens sentaram-se na mesa mais ao fundo do bar e bebiam qualquer trago forte e escuro em copos largos e vazios, como os utilizados para se beber uísque. Odone estava no balcão. Conversava eloqüente e bastante sóbrio com um senhor corpulento e de rosto inexpressivo que beirava os cinqüenta anos. Mas somente ele falava, sem dar tempo para réplica. Bebia animadamente algo translúcido, com gelo, que me pareceu vodka. O senhor corpulento tentou acompanha-lhe no ritmo do trago, mas vi que seu copo estava bem mais cheio que o de Odone. Sentei num banco distante que se escondia atrás do caixa e das torneiras de chope. Pedi por uma cerveja. Odone percebeu quando sentei. Reconheceu-me já que voltou o olhar para mim pelo menos mais duas vezes enquanto falava com o senhor, que permanecia inexpressivo como uma parede branca. Escutei quando Odone pediu por outros dois drinques, e acho que escutei o senhor cancelar o que devia ser seu - já estava tarde, pareceu argumentar. O garçom dispôs um guardanapo e serviu ao lado somente um copo. Duas pedras de gelo, duas doses generosas de vodka e um pouco de água tônica encheram um copo comprido. Enquanto o garçom servia o trago com agilidade o senhor levantou-se um tanto atrapalhado, sacou do bolso uma nota de cinco, entregou-a ao garçom e despediu-se de Odone, sem cordialidade e sem olhá-lo nos olhos, com certa repulsa no tratamento. Quando ficou sozinho Odone balançou a cabeça e disse algo ao garçom, que lhe servia de cúmplice com um risinho descompromissado no rosto.

- Pois então, meu caro, - dirigia-se agora a mim sem olhar-me diretamente, como se conversasse com o garçom - sente-se comigo. - Empurrou o copo que o senhor deixara pela metade arrumando-me o lugar ao seu lado. Olhei-o para certificar-me do convite. Apanhei meu copo e sentei-me ao seu lado, mas não no lado que havia me preparado. Fitou-me os olhos como se tivéssemos conversado no dia anterior.
– Preocupou-se comigo, então? Foi conferir se eu chegava direitinho em casa?
– Como? - perguntei-lhe.
- Soube pelo porteiro que degustaste tua cerveja em frente ao meu prédio enquanto eu cambaleava até o apartamento.
- Custei a acreditar que estavas acabado, precisei de tempo para comprovar. Mas na verdade estava atrás de ar fresco, nada mais.
- Acompanha todos os acabados até suas casas? Faz trabalho comunitário?
- Poderia continuar lhe dizendo que somente é acabado aquele que um dia foi algo, o que eliminaria boa parte do universo de acabados que imaginas haver, mas prefiro encerrar com o tema. Pare com essa bobagem e diga-me, como tem andado, de fato?
- Estou bem, como pode ver. Curo a depressão no fundo do copo, como qualquer um que entenda ser este o único meio para se tratar de males verdadeiros. – Mantinha no rosto um sorriso ignóbil que em qualquer momento transformar-se-ia em algo mais próximo da desgraça mantida oculta atrás do rosto; que se estampava na luz dos olhos e que se identificaria facilmente por qualquer um que lhe olhasse a expressão.
- Continua lecionando? Ainda leciona? – fui obrigado a repetir a pergunta como que para tirá-lo do torpor ao qual a conversa lhe atraíra. Ele escapou do transe sacudindo a cabeça levemente, voltando para conversa.
- Abandonei todas as tarefas administrativas que me ocupavam demais. Estou com bastante tempo livre. Dedico-me agora a coisas de maior importância.
- Como bater ponto numa espelunca como esta. Uma pena para ti.
- Qualquer um pode fazer-se diretor, ou chefe: é uma questão de ter saco e de consentir com aquilo que lhe mandam. – falava com desenvoltura, mas sem estar seguro de si, preferi desviar o tom da conversa.
- De qualquer forma continuas em sala de aula?
- Envolvi-me com uma aluna e fui demitido, perdi o emprego. Até que me agüentei bem, não acha? – forçava uma espécie de alegria, de conformidade no rosto, como se nunca tivessem lhe permitido alternativa que não a demissão. Falei sem pensar, bastante surpreso com a notícia:
- E sua esposa?
- A coisa toda não demorou a chegar aos ouvidos dela. No início dizia a ela ter sido demitido por cortes no quadro docente... – hesitou por alguns segundos a remexer algo sob as unhas, suas mãos estavam nervosas e incertas - Mas a verdade é que eu queria a Marina, dezenove aninhos, uma flor... Minha esposa alugou um apartamento e deixou-me assim que soube da menina. Levou uma mala e mais nada. Não me atendia sequer os telefonemas. Fiquei com tudo – disse rápida e animadamente, como se assim pudesse falsear a verdade ocultando-a por sob um frágil véu de contentamento, tal como uma criança faz ao dizer, com os olhos rasos d’água, que o tombo não doeu.

- E a menina?

Pediu por outro trago enquanto ajeitava-se no banco. Seus olhos caíam à medida que a bebida lhe ocupava a consciência. Tornavam-se mais opacos e cinzas a cada gole. Poder-se-ia dizer que o rosto de Odone estava afundado e sem vida, e que sua amargura aumentava com a minha presença. Quando a dor nos ataca sozinhos falta-nos referência para sopesar seus efeitos sobre nós, enganamo-nos facilmente quando sós; servem-nos os outros, neste caso, como espelhos em que enxergamos as cicatrizes de nossa angústia, as marcas de nossa consternação. Somos capazes de viver anos solitários açoitados por uma grande tristeza sem verter lágrimas, e quando nos encontramos ocasionalmente com alguém que nos é conhecido, basta um cumprimento para que desabemos aos pés de nosso interlocutor.

- Vivo com ela. – Algo parecia remoer-lhe as entranhas. Enxugou o copo num só gole, que rolou pela goela sem respirar. E enquanto apanhava o casaco sobre o pequeno encosto do banco disse-me sem consultar o relógio: estou atrasado, fiquei de entregar algo a ela antes que saísse para a aula. Vamos comigo até meu apartamento, já conheces o caminho, e desta vez convido-te para beber algo lá dentro.
- Na verdade estou sem tempo, - disse com que pudesse evitar o convite. Pousou sua mão fina e pálida em minhas costas, empurrando-me sem fazer força, apenas sinalizando-me o caminho para fora. Indicou com um gesto ao garçom que minha bebida seria inclusa em sua conta. Fez tudo de forma a não deixar-me alternativa. Tampouco me pareceu indesejoso acompanhá-lo. Tomei mais um gole e deixei meu copo pela metade.

Na rua alguns lampejos de vento lembravam-nos o inverno. Mas prevalecia, estranhamente, uma brisa morna que vestia os pedestres com casacos finos e leves. Caminhamos lado a lado. Seu edifício ficava a duas quadras do bar. Atravessamos um centro comercial que se preparava para fechar as portas. Mantinham-se abertas pela metade, somente para que os últimos funcionários pudessem sair. Havia sorrisos espalhados pela rua. O fim do expediente e o frio que ameaçava chegar provocavam certa euforia. Odone mantinha o mesmo rosto, se bem que mais iluminado e ambíguo.

O porteiro esperava-nos com a porta aberta. Não o percebi abrindo a porta, era a mesma posição da última vez que o vi, o que me fez inventar ser ele uma estátua, não fosse por nos dizer boa noite. Subimos as escadas com certa agitação, como se algo incrível nos esperasse. O apartamento estava quieto, poder-se-ia dizer que ninguém o habitava. Sala e cozinha conjugadas e algumas portas que deveriam ser escritório, quarto e banheiro, todas fechadas. Sobre o balcão que separava cozinha e sala alguns copos usados, uma bandeja com guardanapos e uma tigela praticamente cheia de biscoitos. Odone pareceu contrafeito por não encontrar a menina em casa. Grunhiu algo entre os dentes e conferiu em meu rosto minha esperteza em reconhecer-lhe o malogro. Como se não o afetasse minha impressão correu para uma das portas, levando-me com um gesto estranho e destrambelhado. Abriu a porta abruptamente, como se a coiceasse. Estavam sentados à margem da cama Marina e um rapaz bastante moço, muito próximos e íntimos, grudados um no outro. Eles sorriam carinhosa e sensualmente quando foram surpreendidos. A cama estava arrumada, mas o lençol marcava a silhueta de corpos que ali se deitaram sem se cobrir. Os dois olharam-no com admiração. Enquanto o menino transformava o rosto arregalando cada vez mais os olhos assustados Marina saltou da cama e vociferou contra Odone.

- Isso é jeito de se entrar? Quase nos mata de susto, seu louco. Não se tem mais privacidade alguma por aqui?! – a menina não conseguia sequer falar corretamente, tal era sua fúria e explosão. Olhava Odone de cima a baixo, cheia de desprezo e aversão.
- Calma querida, não sabia que estava em casa. Vim lhe entregar o dinheiro, estava preocupado.
- Pois me dê o dinheiro. E por favor, não me pregue mais peças como essa, quase morri de susto. – Ela se levantava e arrastava consigo, pela mão, o menino. O rapaz procurou despedir-se com o olhar, mas não houve tempo, em poucos instantes estavam fora.

A porta bateu com força, deixou-nos sós no apartamento, eu, Odone e um silêncio envergonhado. Odone procurou dizer-me algo, mas não conseguiu formular frase alguma. Entendi que a surpresa não lhe fora grande como a minha. Ele entendia o tamanho de minha surpresa e tentava a ela explicar algo. Ficamos alguns segundos em pé, desconfortáveis e ausentes: ambos relíamos a cena e demorávamos a retornar para o presente. Como se eu precisasse dizer algo, propus.

- Meu caro, disse procurando um relógio, preciso mesmo ir embora. Tenho coisas pendentes a fazer e preciso estar sóbrio, se é que me entendes. – disse sem dar-lhe opção de resposta.
- Ok, claro. Encontraremo-nos por aí, não é mesmo? – disse-me atônito, sem olhar-me os olhos.

Na entrada do edifício, do lado de dentro, pude ver o porteiro e sua porta aberta. Esperava-me ele de costas, como se antecipasse minha saída. Saí sem cumprimentá-lo para não deixar testemunhas de minha visita. Preferi não jantar. Tomei um copo d’água e desisti de qualquer correção naquela noite; retomaria o trabalho ao acordar, depois de preparar um café forte e de comer algum sanduíche.

Retornei ao bar algumas vezes depois, mas não mais encontrei meu antigo professor por lá. Não sabia ao certo se queria vê-lo, mas mesmo assim algo forçava-me ir a seu encontro. Fui até a frente do seu edifício e sentei-me no antigo banco. Vi que as luzes estavam acessas em todas as janelas do apartamento de Odone. Pensei que lá dentro ele chorava, que estava sozinho e que assim preferiria ficar.