sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Tempo em vão

A sala em que passava os dias era escura, mas a certo momento do dia a posição do sol encontrava, com exatidão, uma única fenda talhada na junção hermética das paredes. Inundava sua cama de um tom ocre, de calor e traço delicado. Revelava nela os bolores e o mofo que a escuridão e a umidade construíam com paciência. O verão se anunciava através de um vapor morno e adocicado que soprava de uma tela de ventilação instalada na parte mais baixa de uma das paredes. Procurava adivinhar nos odores daquele breu os percursos, os quartos, e a distância percorrida antes de bater em sua pele. E predizia também o verão, que lhe consentia o cálculo dos dias, a corrida do tempo, a iminência da morte. Quando cessava o verão e interrompia-se o movimento daquela periódica respiração, instaurava-se o início de outra era, que às vezes durava mais, outras vezes menos, mas que encerrava-se, via de regra, com a notícia do próximo verão. Não havia sorriso, disfarce ou desespero. As lágrimas lhe vinham como a fome, mas não saberia distinguir uma da outra - brotavam do tempo, cujo criador jamais soube precisar. E assim terminou os dias.

Pobre do homem, único dos animais destituído de instinto, se algo nele não for trabalhosamente construído, o que dele será?

sábado, 29 de setembro de 2007

Lágrima 2

Frequentemente recordava do dia que amargou sua vida.
Encontrou com ela inesperadamente. Já havia percorrido todos os espaços possíveis e, ao entrar no último que faltava, por pouco não esbarrou no rosto que saía taciturno ao seu encontro. Lembrou-se algum tempo depois do olhar baixo e distante que se estampava em Sabrina, havia um plano em exercício. A inclinação do rosto e a respiração nervosa da moça já prenunciavam a tristeza que o dia lhe reservava. Mas não foi capaz de acreditar na suspeita que alterava abruptamente o ritmo comum do encontro. Beijaram-se rapidamente. - Está linda. – tu também estás... gostaria de conversar noutro lugar. Vamos a minha casa.

Lembrava-se de ter enterrado o rosto na carne da mão e de nela apoiar as lágrimas. Desejava mantê-las ocultas se possível, mas seu esforço trabalhava em vão. Pouco pode lhe dizer, não lhe saía a voz. O terror de não mais vê-la, de não tê-la nos braços à noite, de ter que inventar uma vida alheia a dela, lhe arrancava o ar e lhe deixava o coração arrebentado. E lhe enganava a razão; não se fixava a nenhum pensamento – corriam eles desconexos numa marcha disforme que lhe desesperava. Cravou os dedos nas têmporas como que para estancar a corrente de lágrimas que lhe vertiam dos olhos, da garganta, do peito. Na verdade, mesmo que se lhe fosse disponível a voz, não saberia o que lhe dizer. Que dizer quando se não há mais como minorar a ferida, quando se conhece apenas a treva de um poço do qual não se enxerga o topo? Quis afastar-se da compaixão que se desenhava em Sabrina. Nela não se formava choro algum, mas ao contrário, poder-se-ia adivinhar em seu rosto certa benevolência que fazia crispar-lhe os cantos da boca. Levantou com esforço a cabeça e verificou quê sentimentos estavam nela. Entendeu que ela nada poderia fazer, que de nada adiantaria ver forjarem-se lágrimas em consideração à tragédia de Martins. Sentiu-se grato a ela, apesar de tudo. Precisava sair e levar consigo o que lhe restava. Não lhe podia ser pior, não conseguiria permanecer um instante sequer ali. Levantou-se sem dirigir-lhe o olhar. Engasgou. Tremeram-lhe as pernas, mas ainda assim arrastou-se. Entorpecido. Com dificuldade girou a chave, golpeou a maçaneta, e fechou a porta atrás de si, cuidadosamente, como o preocupasse batê-la com força; como fosse aquele um dia qualquer.

O levantar do dia estragava o humor de Sabrina. Somente deixava o quarto pela manhã quando uma obrigação se lhe impunha. Levantar cedo lhe era difícil e aborrecido. Dizia-se feia ao acordar e que sua beleza se desenvolvia ao longo do dia, mas nunca antes do fim da aurora. Naquela manhã, em que o sol se esforçava em amarelar os jardins ainda úmidos pela noite, não fora diferente. Olheiras fundas e negras turvavam seu rosto ainda adormecido, quase lhe desfiguravam. Lastimou-se por ter esquecido o óculos de sol em casa – indispensáveis pela manhã. Preocupava-se em ser vista longe de sua melhor forma. Disfarçou as bolsas que lhe amparavam os olhos com o cabelo: única ferramenta que lhe veio à tona. Uma franja rubra e espessa tentou dissuadir os olhos de seu inchaço – mas lhe fazia também crescer a fronte deixando-a em proeminência. Seus cabelos estavam descuidados, mas eram belos e fortes: colocavam-na em destaque independente da forma como estivessem dispostos de sua cabeça; olhares atraídos a acompanhavam para vê-los dançar. A desenvoltura do cabelo era o que lhe restava de natural em meio a tanta simulação.

Ao identificá-la vindo de longe pensou se a menina conhecia e dominava as faculdades de suas madeixas. As conhece, sem dúvida, mas não sabe como delas fazer uso: deixa pender sobre o rosto uma só mexa que lhe destrói a simetria e o equilíbrio do passo. Atrapalha-se.

Sabia andar em desalinho naquele instante, mas não pode controlar-se. Fixou com o olhar a curva de um galho que invadia o corredor da escola e desmanchava-se contra a parede: enchia de vida o grisalho descuidado do prédio. Adotou o plano para não parecer mais desconfortável do que estava. Teve a sensação de medir dois metros – era um gigante avançando por entre o labirinto da escola. Percebeu que seu rosto entortava-se à medida que dele se aproximava (tenho um olhar estranho). Mas já nada podia fazer – ele já tinha decidido que seu olhar ficaria sobre o dela e sabia do esforço dela para não deixar os dois olhares se encontrarem. Martins guardou com distinção o momento em que reconheceu a mulher de sua vida.

Jamais imaginou ela que seu andar desengonçado pouco afetava a impressão que causava no rapaz. Martins ocupava-se de outros traços e não daqueles que em vão tentava ela forjar. O que o atraiu para a moça era indecifrável, desconhecido e mudo, não conseguiria descrevê-lo mesmo depois do abandono que lhe aniquilou. Algo que lhe ocupou completamente; não houve nele espaço vago para qualquer outro empreendimento, para qualquer outra aventura cujo fim não fosse conquistar Sabrina, tê-la como sua. Quando nos resta somente uma alternativa a ela nos doamos inteiramente e é difícil acabar derrotado já que a ela dedicamos todas nossas forças. Mas logo soube que aquilo que lhe atraiu a ela lhe fazia mal. E continuou fazendo mesmo depois de tê-la conquistado. Não há amor sem que haja sofrer, quando este é leve e aprazível, aquele é frágil e insatisfeito; quando é forte e arrasador, aquele é tenso e é um vício.

O amor que ali descobria lhe revelou outras cores nos dias que viriam. Rememorava febrilmente do tempo em que esteve com ela. Tempo de dias inquietos, mas também fartos, coléricos e deliciosos. Tempo que contaminou para sempre a pureza dos dias que ainda lhe restavam. Tempo de cujos dias não se arrependera. Tempo onde jamais reconhecera a natureza do material que lhe alimentava com tanta força a saudade; e desta nunca pode se desvencilhar.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Outro dia raso

Outro dia raso. Esqueceu de verificar o horário ao acordar: pouco lhe importava as horas, mas percebeu que era cedo, o céu ainda estava cinza e o vento gelado. Debruçou-se sobre o parapeito da janela e observou o movimento do início do dia. Um carro da polícia atraía um grupo de pessoas que transformava o cenário corriqueiro. Divisou uma cabeça deitada de lado que caía de uma fenda da aglomeração.
- Pobre homem, fora atropelado.
O caso lhe agitava a manhã, lha deixava estranha e ligeiramente agradável. O acidente atrapalhava o trânsito que aos pouco ganhava um volume incomum de carros. Dos carros mais distantes começaram a gritar algumas buzinas; não sabiam elas que um corpo jazia estirado mais a frente. O grupo de pessoas permanecia imóvel contornando o acidentado.
- O que desejariam elas... Entretenimento. - Reconheceu o soar distante de uma sirene; uma ambulância corria de longe. - Estes desocupados deviam abrir espaço para que se prestassem os primeiros-socorros – ocorreu-lhe. Subiu-lhe ligeiramente o sangue, pensou em gritar algo aos que atrapalhavam o socorro da vítima, mas acalmou-se, estava distante demais para se fazer ouvir, preferiu afastar-se, fechar a janela, a manhã era fria.

Fitou as paredes do apartamento. Uma a uma, sem ânimo, automaticamente. Alguns móveis e objetos desalinhados, sem brilho, davam ao aposento um aspecto abandonado. Pensou em dedicar parte do dia à arrumação do quarto, mas desistiu logo da idéia. Quando se permite a alguém qualquer possibilidade acaba o indivíduo por não fazer nada já que qualquer escolha tende a encurtar o leque de alternativas oferecido. Foi até sua mesa de trabalho; sem sentar, com a poupa das mãos apoiadas sobre a superfície da mesa, os braços esticados e os ombros alongados para frente, organizou mentalmente sua manhã de estudos: adivinhou onde se encontravam os livros de que necessitaria, conferiu a carga da caneta, definiu a seqüência daquilo que estudaria, mas tratou de desviar a atenção, ainda não era hora de ali se reter. Batia-lhe alguma angústia. Suspirou fundo e foi até a cozinha preparar algo. O hábito se encarregaria de organizar as coisas, de acalmar-lhe o dia; a idéia lhe trouxe conforto. Encheu a chaleira d’água. Serviu-se de duas fatias de pão e preparou o café. Comeu em pé. Olhou com certa repugnância os pratos empilhados na prateleira, havia descaso na arrumação da louça; alguns guardanapos empoeirados e amassados dividiam em desalinho os pratos maiores dos menores, os pratos escapavam do eixo, cada qual para um lado, como se quisessem saltar para fora. Um raio espesso de luz irrompeu contra a poltrona desviando-lhe a atenção. Inundada de sol era ela o espaço mais quente da casa: convidava-lhe a leitura. Acabou por reordenar a seqüência do dia. Deixou a mesa à espera: teria tempo mais tarde. Acomodou-se na poltrona, inclinou-se para a direita de forma a aproveitar o calor que rompia a penumbra do apartamento; escolheu um livro que havia recebido na véspera, uma nova edição de uma obra já conhecida - interessava-se em analisar as alterações de uma edição para outra. Alguém na porta, duas batidas de tal forma abafadas pelo burburinho da rua que tiveram que se repetir para que se confirmassem. A camareira lhe trazia uma carta. Desconfiou imediatamente de seu conteúdo. Voltou para a poltrona, mas o conteúdo que a carta trazia não lhe permitiu aproveitar o prazer que o sol insinuara.

Poucas linhas destruíam o projeto dos últimos seis meses. Demorou alguns instantes para alcançar o que lhe legava a mensagem. Não havia mais motivo algum para continuar: a editora que o havia contratado não mais precisaria de seu livro. Um livro cuja história lhe exigira, seis meses antes, uma difícil rescisão. Renunciou então a seus planos de vida e passara a viver distante, noutra cidade. Na época tal decisão parecia por fim à dura rotina que construíra com a esposa, ao tormento que lhe era conviver com as desgraças de sua família, ao trabalho tortuoso e execrável que mantinha por conveniência, parecia salvar-lhe. Durante as primeiras semanas distante da mulher percebera o equívoco que cometera. Como lhe foi difícil estar afastado dela. Desde sua decisão tampouco havia meios para retornar. Abandonara a esposa, suas novas responsabilidades não deixavam espaço para ela: fechou as portas do passado e sobre ele depositou pedras irremovíveis. Certo dia um telefonema botava fim a relação: sua então esposa dizia estar apaixonada por outro, por alguém que não permitiu a ela sequer chorar a falta do marido, alguém que agora lha ocupava inteiramente. Ela fora intensa e sincera, também nada podia fazer para poupá-lo da dor. Melhor assim, pensava irremediavelmente, teria sido terrível receber clemência da mulher que ele próprio abandonou.

Já nas primeiras semanas de sua campanha os dias tornaram-se duros e longos. A produção de seu texto lhe era um exercício custoso, débil, revelava-se gradativamente um produto frágil e vazio. Agarrou-se à rotina, enfermeira habilidosa, e a ela confiou o terror dos dias. Não obstante esta carta agora lhe jogava no chão, num solo liso e escuro, sem apoios com que contar. Olhou seu rosto no espelho e sorriu aturdido. Deu passos firmes até o telefone, levantou o gancho e procurou a esposa. No primeiro soluço do telefone desligou. Voltou para a mesa, apanhou sua carteira e arrancou o casaco que cobria o encosto da cadeira vestindo-se enquanto já ganhava a rua.

O frio já não o incomodava, embora fosse responsável pelo movimento escasso de pedestres que preferiram o calor de suas casas ao frio que uivava ali fora. Não lhe corria lágrima alguma, mas algo lhe engasgava e atrapalhava seguidamente a respiração. Aspirava com muita força o ar gelado do dia. Sentia a garganta seca e fria, enquanto que as pernas aqueciam-se em passadas nervosas. Avançava por entre as quadras, percorreu um, dois bairros, até que não pode mais caminhar. Adivinhou um boteco ao lado de uma pequena oficina mecânica – uma pequena placa com letras descascadas lhe confirmava. As mesas estavam vagas, dois funcionários, sem pressa alguma, faziam a limpeza da noite anterior. Sentou-se próximo do balcão, numa mesa para duas pessoas, e chamou por alguém. Trouxeram-lhe uma lata de cerveja. Tragou de um gole. Os primeiros clientes chegaram ao boteco quando o relógio já marcava doze horas. O lugar rapidamente ficou cheio, mas ele permaneceu indiferente à multidão. Ocorria-lhe um universo de reflexões, todas breves, informes, desconectadas, jamais poderia fazer-lhes uso. Acabou atendo-se, sem saber por que, às que lhe traziam, qual um analgésico virtuoso, o sorriso e o perdão da esposa. Agarrou-se à imagem da mulher e, apoiado nela, voltou para casa.

O dia levantara definitivamente; o ar era diferente daquele que o alimentou quando saía, pela manhã, porta a fora: o vento acalmava-se em brisa, o frio intenso tornara-se morno. E as idéias pareciam se encontrar umas às outras, transformavam-se em planos. Diziam-lhe elas que o retorno lhe era a única opção, que não havia nisso embaraço algum, que um homem erra, perde a cabeça, e que a dignidade está em se defender aquilo que se ama, haja o que houver. Quase em frente ao seu prédio, um edifício amarelado, de cujas janelas caíam espessas tranças de samambaias, de diversas tonalidades de verde e amarelo, resolveu: descansar e partir ao amanhecer. Enquanto atravessa a rua e descobria a presença de outros matizes destacando-se das madeixas das plantas um carro lhe apanhou violentamente as pernas. Girou duas vezes antes de se desmantelar próximo ao meio fio. Alguns gritos vinham borrar o silêncio. Um grupo de pessoas lhe rodeava, um carro da polícia se aproximou, uma ambulância gritava de longe. Imaginou que estaria atrapalhando o trânsito, mas não pode se mover. Faz frio ali fora, pensei.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O pedido do marido

Sorriu de modo imperceptível ao lhe ver sentado. Descalçava as luvas e as dispunha sobre o aparador de forma que servissem elas de berço onde pudesse acomodar o anel que ao final do dia lhe estrangulava o dedo inchado. Este hábito lhe era corriqueiro e repetia-se sempre que chegava em casa. Na porta lateral, que ligava a sala ao escritório, a governanta aguardava que fosse liberada, esforçando-se em compor uma expressão que indicasse não ser ela a responsável pela entrada da visita. Para que pudesse desviar os olhos e ocultar assim a surpresa que seu rosto tomara consentiu a retirada da empregada com um ligeiro olhar. Enquanto sentava-se ordenou que não fosse perturbada.

- pois bem... o que deseja? - argüiu com a respiração ofegante causada pela emoção que lhe subia e esquentava a garganta. Cabisbaixo, Jonas levantou-se e, com as mãos moles unidas em súplica, pôs-se a falar.

- Entenda que somente vim lhe procurar por não me restar alternativa. - Seus olhos estavam cheios, mas o que lhe sensibilizava não eram as lembranças do matrimônio, e sim o terror do fracasso de sua empreitada. Arregaçou uma das mangas e procurou gravidade para as suas palavras: - Estou sem recurso algum, querida. Não quero lhe expor às desgraças que me têm acompanhado, mas lhe garanto que não conseguirei manter-me um mês sequer... Marta está gravemente enferma. Dizem que não passará de duas semanas. Os médicos recusam-se ao tratamento caso eu não lhes adiante parte do pagamento. Estou desesperado e somente a ti posso recorrer, meu amor. Entenda minha desgraça e diga-me que vai ajudar com algum dinheiro. Não lhe peço muito, somente o suficiente para quitar as despesas com o tratamento e garantir o aluguel até o fim dos dias de Marta.

Jonas assegurava, apesar de tudo, a elegância do traje e das maneiras. Enquanto acomodava-se em um sofá mais próximo ao da poltrona ocupada por Matilde tratou de soltar um dos botões do paletó, como para lhe garantir o ar e a calma necessários para tratar do assunto com lucidez, mas também para lhe permitir uma postura que acreditava lhe cair bem. Jonas esteve casado com Matilde por seis anos. Sua desenvoltura, a fluência de sua fala, seu andar gracioso e embusteiro, o porte que ostentou na juventude, e que ainda preservava qualquer coisa de conquistador, fizeram com que Matilde se apaixonasse pelo então rapaz. Já nos primeiros anos de matrimônio a desconfiança dela sobre o marido fora despontando e, à medida que os dias sucediam-se, poucas dúvidas restavam à esposa sobre as traições do outro. Jonas já mantinha relações habituais com uma das empregadas da casa quando Matilde, sem lhe comunicar a descoberta, expulsou a menina. O marido envolveu-se ainda, durante os últimos anos de casado, com um sem número de mulheres, mas o casal parecia compactuar da infidelidade do marido e sobre ela nada falar.

Certo dia Matilde encontrou uma carta em que Jonas dizia estar saindo de casa e que passaria a viver com Marta, única sobrinha de Matilde. Por muitas vezes Matilde procurou Jonas a fim de lhe dar espaço para retratações, para que pudesse o marido abandonar a amante e regressar a casa, para que recuperasse ela, por fim, a única chance de viver. Contudo, mostrou-se insensível aos apelos da esposa e pediu, ainda, que não fosse mais procurado, já que a insistência causava indisposição e embaraço à Marta e que não havia meios para que prosperasse. Passaram, enfim, dois anos sem se encontrar, período da vida de Matilde cujos dias foram manchados de manhãs doloridas e de noites desgraçadas.

Após o apelo de Jonas, cuja expressão armada interrogava a ex-esposa sobre sua decisão, Matilde manteve os olhos firmes, arcados, duros... entorpecidos. Não havia mais lágrimas em seus olhos, mas sobrava-lhes sofrimento. Ocupou-lhe a mente uma infinidade de emoções, de planos, de amargura; pelo seu corpo corriam fluxos de peso, calor e velocidade desconhecidos; estava tomada de dor, não acreditava guardar forças para manter-se firme. No entanto, não pode dar corpo às suas proposições, e, com os olhos vidrados sobre o rosto vitimado de Jonas, disse: - Arruma as tuas coisas e as de Marta e venham os dois morar em minha casa. – Jonas, tomado de surpresa, não pode sequer fazer uso do conjunto de expressões que havia ensaiado para a cena e, ainda indeciso sobre o sucesso de seu plano, como uma criança obediente, de olhos baixos e agradecidos, beijou as mãos de Matilde e saiu porta a fora.

terça-feira, 3 de julho de 2007

domingo, 1 de julho de 2007

Lágrima

Enquanto caminhava percebia que minhas pernas andavam sozinhas, sem que pudesse eu lhes afetar a vontade. Estavam elas em descompasso. Minha cabeça inclinava-se desequilibrada, como se fosse de areia, pesada, atrapalhava o ritmo acelerado de minha marcha. Era como se não pudesse o raciocínio me convencer de que tal aventura me era assustadora. Não queria jamais me expor outra vez à humilhação. Explodi horrivelmente e agora corro a favor daquilo que jamais mereci. Mas não consigo sequer formar em meu pensamento a presumida ineficácia de meu apelo. Vou encontrá-la e aos pés dela chorar. Procurarei não chorar antes.

Chamei-a pelo sinal da campainha. O primeiro toque, incerto, destoou do segundo, que fiz com o dedo cravado. O barulho que se ouvia fora do apartamento era mais agudo do que o que corria dentro; era também mais alto... vergonhoso. Lá dentro os passos, que demoraram a rugir e que subitamente tornaram-se firmes, revelaram a surpresa, a indecisão e a coragem que precisou ela encontrar para vir até a porta. O corpo do som e o ritmo das batidas da sirene deixavam claro para ela que era eu que lhe batia a porta. Encontrei-a terrivelmente inteira. Já sabia de seu estado, mas preferi achar que estava ela como eu. Ela estava melhor do que jamais estivera. Radiava. Havia em seu rosto uma consternação calculada, imprópria, mas que vinha acomodar-se ao conjunto que formávamos, eu, um arrebentado, e ela, que dissimulava alívio de tristeza. Como a expressão lhe caía bem. Minha presença a piorava. Minha garganta engasgava. Lhe fiz mal durante o tempo que estive ao seu lado. Sempre lhe quis o bem. Como foi que não percebi. Fui subordinado às vontades dela. Foi esse meu engano. Deixei de lado o que mais me importava. Afastei todos de mim. E junto deles agora está ela, longe.

Estava na sua frente e não pude dizer nada. Teria-me sido pior a palavra. Somente esclareceria para ela sobre o que agora para mim tornava-se claro, eu lhe fazia mal. Daria-lhe contento e confiança. Perderia minha última esperança. Fiquei quieto, torci os ombros (minhas pernas escolheriam ficar), e, ainda de cabeça baixa, desci novamente as escadas que separavam a porta do apartamento e o acesso ao edifício. Acabava de subi-las estarrecido e agora as descia, como morto. Caíram de mim lágrimas que somente muito tempo depois deixaram de surgir dos olhos, mas que permanecem apertando o coração.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Mulher

Ama-se somente uma mulher na vida. Esse amor geralmente nos é o primeiro, mas quando ocorre não somos ainda capazes de identificá-lo. (Todos os próximos não são de fato amor: tomam àquele como referência e dele jamais se desvencilham. Lhe são prolongamentos, desvios, tentativas, mas não têm nada de natural). Ocorre que o conduzimos como fosse inexpressivo, como se fosse o primeiro de muitos que se repetirão de forma muito mais intensa e viva, e por ele somos tapeados. Existem homens que durante o completo curso da vida sequer percebem a importância deste amor, o que lhes é aparentemente terrível. E existem outros que o percebem e o tomam como referência para toda tentativa de amar. Sobretudo, em um caso ou no outro, o homem jamais terá a mulher que lhe provocou seu único amor. É impossível. Felizes são aqueles que não chegam a provar do convívio com a amada, para que possam adivinhar na memória momentos felizes que jamais tiveram, mas que lhes servirão de consolo, qual uma esperança distante que mantém acessa a chama da vida, que ilumina o ânimo e faz pulsar o peito. Nada mais triste que renunciar ao conhecido e de guardar consigo o rancor da repulsão, motivos pelos quais jamais será feliz o homem que provou da mulher amada. É a visão roubada de alguém que, já conhecendo a luz, é carregado para a treva da escuridão. Aos dois casos somente resta um consolo: o de agourar, no pior dos dias, o sorriso da mulher que te arruinou a vida, e a certeza de que dela somente podes usar a lembrança.