sábado, 29 de setembro de 2007

Lágrima 2

Frequentemente recordava do dia que amargou sua vida.
Encontrou com ela inesperadamente. Já havia percorrido todos os espaços possíveis e, ao entrar no último que faltava, por pouco não esbarrou no rosto que saía taciturno ao seu encontro. Lembrou-se algum tempo depois do olhar baixo e distante que se estampava em Sabrina, havia um plano em exercício. A inclinação do rosto e a respiração nervosa da moça já prenunciavam a tristeza que o dia lhe reservava. Mas não foi capaz de acreditar na suspeita que alterava abruptamente o ritmo comum do encontro. Beijaram-se rapidamente. - Está linda. – tu também estás... gostaria de conversar noutro lugar. Vamos a minha casa.

Lembrava-se de ter enterrado o rosto na carne da mão e de nela apoiar as lágrimas. Desejava mantê-las ocultas se possível, mas seu esforço trabalhava em vão. Pouco pode lhe dizer, não lhe saía a voz. O terror de não mais vê-la, de não tê-la nos braços à noite, de ter que inventar uma vida alheia a dela, lhe arrancava o ar e lhe deixava o coração arrebentado. E lhe enganava a razão; não se fixava a nenhum pensamento – corriam eles desconexos numa marcha disforme que lhe desesperava. Cravou os dedos nas têmporas como que para estancar a corrente de lágrimas que lhe vertiam dos olhos, da garganta, do peito. Na verdade, mesmo que se lhe fosse disponível a voz, não saberia o que lhe dizer. Que dizer quando se não há mais como minorar a ferida, quando se conhece apenas a treva de um poço do qual não se enxerga o topo? Quis afastar-se da compaixão que se desenhava em Sabrina. Nela não se formava choro algum, mas ao contrário, poder-se-ia adivinhar em seu rosto certa benevolência que fazia crispar-lhe os cantos da boca. Levantou com esforço a cabeça e verificou quê sentimentos estavam nela. Entendeu que ela nada poderia fazer, que de nada adiantaria ver forjarem-se lágrimas em consideração à tragédia de Martins. Sentiu-se grato a ela, apesar de tudo. Precisava sair e levar consigo o que lhe restava. Não lhe podia ser pior, não conseguiria permanecer um instante sequer ali. Levantou-se sem dirigir-lhe o olhar. Engasgou. Tremeram-lhe as pernas, mas ainda assim arrastou-se. Entorpecido. Com dificuldade girou a chave, golpeou a maçaneta, e fechou a porta atrás de si, cuidadosamente, como o preocupasse batê-la com força; como fosse aquele um dia qualquer.

O levantar do dia estragava o humor de Sabrina. Somente deixava o quarto pela manhã quando uma obrigação se lhe impunha. Levantar cedo lhe era difícil e aborrecido. Dizia-se feia ao acordar e que sua beleza se desenvolvia ao longo do dia, mas nunca antes do fim da aurora. Naquela manhã, em que o sol se esforçava em amarelar os jardins ainda úmidos pela noite, não fora diferente. Olheiras fundas e negras turvavam seu rosto ainda adormecido, quase lhe desfiguravam. Lastimou-se por ter esquecido o óculos de sol em casa – indispensáveis pela manhã. Preocupava-se em ser vista longe de sua melhor forma. Disfarçou as bolsas que lhe amparavam os olhos com o cabelo: única ferramenta que lhe veio à tona. Uma franja rubra e espessa tentou dissuadir os olhos de seu inchaço – mas lhe fazia também crescer a fronte deixando-a em proeminência. Seus cabelos estavam descuidados, mas eram belos e fortes: colocavam-na em destaque independente da forma como estivessem dispostos de sua cabeça; olhares atraídos a acompanhavam para vê-los dançar. A desenvoltura do cabelo era o que lhe restava de natural em meio a tanta simulação.

Ao identificá-la vindo de longe pensou se a menina conhecia e dominava as faculdades de suas madeixas. As conhece, sem dúvida, mas não sabe como delas fazer uso: deixa pender sobre o rosto uma só mexa que lhe destrói a simetria e o equilíbrio do passo. Atrapalha-se.

Sabia andar em desalinho naquele instante, mas não pode controlar-se. Fixou com o olhar a curva de um galho que invadia o corredor da escola e desmanchava-se contra a parede: enchia de vida o grisalho descuidado do prédio. Adotou o plano para não parecer mais desconfortável do que estava. Teve a sensação de medir dois metros – era um gigante avançando por entre o labirinto da escola. Percebeu que seu rosto entortava-se à medida que dele se aproximava (tenho um olhar estranho). Mas já nada podia fazer – ele já tinha decidido que seu olhar ficaria sobre o dela e sabia do esforço dela para não deixar os dois olhares se encontrarem. Martins guardou com distinção o momento em que reconheceu a mulher de sua vida.

Jamais imaginou ela que seu andar desengonçado pouco afetava a impressão que causava no rapaz. Martins ocupava-se de outros traços e não daqueles que em vão tentava ela forjar. O que o atraiu para a moça era indecifrável, desconhecido e mudo, não conseguiria descrevê-lo mesmo depois do abandono que lhe aniquilou. Algo que lhe ocupou completamente; não houve nele espaço vago para qualquer outro empreendimento, para qualquer outra aventura cujo fim não fosse conquistar Sabrina, tê-la como sua. Quando nos resta somente uma alternativa a ela nos doamos inteiramente e é difícil acabar derrotado já que a ela dedicamos todas nossas forças. Mas logo soube que aquilo que lhe atraiu a ela lhe fazia mal. E continuou fazendo mesmo depois de tê-la conquistado. Não há amor sem que haja sofrer, quando este é leve e aprazível, aquele é frágil e insatisfeito; quando é forte e arrasador, aquele é tenso e é um vício.

O amor que ali descobria lhe revelou outras cores nos dias que viriam. Rememorava febrilmente do tempo em que esteve com ela. Tempo de dias inquietos, mas também fartos, coléricos e deliciosos. Tempo que contaminou para sempre a pureza dos dias que ainda lhe restavam. Tempo de cujos dias não se arrependera. Tempo onde jamais reconhecera a natureza do material que lhe alimentava com tanta força a saudade; e desta nunca pode se desvencilhar.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro autor, não me espanta que esta crônica não tenha recebido nenhum comentário. Quê dizer diante de um texto tão pessoal e emocionado?
De qualquer modo, me fez lembrar dos textos de Miguel Souza Tavares em "Nunca te deixarei morrer David Crockett". Você já leu?
Bjs,
Mirella

Anônimo disse...

Finalmente, podemos voltar a deixar nossas míseras emoções perante tua força, paixão,sensibilidade; e dúvidas perante o imenso universo de teus sentimentos...tu és sábio, curioso, apaixonado e triste...ohhh filósofos, como compreendelos???