sexta-feira, 6 de julho de 2007

O pedido do marido

Sorriu de modo imperceptível ao lhe ver sentado. Descalçava as luvas e as dispunha sobre o aparador de forma que servissem elas de berço onde pudesse acomodar o anel que ao final do dia lhe estrangulava o dedo inchado. Este hábito lhe era corriqueiro e repetia-se sempre que chegava em casa. Na porta lateral, que ligava a sala ao escritório, a governanta aguardava que fosse liberada, esforçando-se em compor uma expressão que indicasse não ser ela a responsável pela entrada da visita. Para que pudesse desviar os olhos e ocultar assim a surpresa que seu rosto tomara consentiu a retirada da empregada com um ligeiro olhar. Enquanto sentava-se ordenou que não fosse perturbada.

- pois bem... o que deseja? - argüiu com a respiração ofegante causada pela emoção que lhe subia e esquentava a garganta. Cabisbaixo, Jonas levantou-se e, com as mãos moles unidas em súplica, pôs-se a falar.

- Entenda que somente vim lhe procurar por não me restar alternativa. - Seus olhos estavam cheios, mas o que lhe sensibilizava não eram as lembranças do matrimônio, e sim o terror do fracasso de sua empreitada. Arregaçou uma das mangas e procurou gravidade para as suas palavras: - Estou sem recurso algum, querida. Não quero lhe expor às desgraças que me têm acompanhado, mas lhe garanto que não conseguirei manter-me um mês sequer... Marta está gravemente enferma. Dizem que não passará de duas semanas. Os médicos recusam-se ao tratamento caso eu não lhes adiante parte do pagamento. Estou desesperado e somente a ti posso recorrer, meu amor. Entenda minha desgraça e diga-me que vai ajudar com algum dinheiro. Não lhe peço muito, somente o suficiente para quitar as despesas com o tratamento e garantir o aluguel até o fim dos dias de Marta.

Jonas assegurava, apesar de tudo, a elegância do traje e das maneiras. Enquanto acomodava-se em um sofá mais próximo ao da poltrona ocupada por Matilde tratou de soltar um dos botões do paletó, como para lhe garantir o ar e a calma necessários para tratar do assunto com lucidez, mas também para lhe permitir uma postura que acreditava lhe cair bem. Jonas esteve casado com Matilde por seis anos. Sua desenvoltura, a fluência de sua fala, seu andar gracioso e embusteiro, o porte que ostentou na juventude, e que ainda preservava qualquer coisa de conquistador, fizeram com que Matilde se apaixonasse pelo então rapaz. Já nos primeiros anos de matrimônio a desconfiança dela sobre o marido fora despontando e, à medida que os dias sucediam-se, poucas dúvidas restavam à esposa sobre as traições do outro. Jonas já mantinha relações habituais com uma das empregadas da casa quando Matilde, sem lhe comunicar a descoberta, expulsou a menina. O marido envolveu-se ainda, durante os últimos anos de casado, com um sem número de mulheres, mas o casal parecia compactuar da infidelidade do marido e sobre ela nada falar.

Certo dia Matilde encontrou uma carta em que Jonas dizia estar saindo de casa e que passaria a viver com Marta, única sobrinha de Matilde. Por muitas vezes Matilde procurou Jonas a fim de lhe dar espaço para retratações, para que pudesse o marido abandonar a amante e regressar a casa, para que recuperasse ela, por fim, a única chance de viver. Contudo, mostrou-se insensível aos apelos da esposa e pediu, ainda, que não fosse mais procurado, já que a insistência causava indisposição e embaraço à Marta e que não havia meios para que prosperasse. Passaram, enfim, dois anos sem se encontrar, período da vida de Matilde cujos dias foram manchados de manhãs doloridas e de noites desgraçadas.

Após o apelo de Jonas, cuja expressão armada interrogava a ex-esposa sobre sua decisão, Matilde manteve os olhos firmes, arcados, duros... entorpecidos. Não havia mais lágrimas em seus olhos, mas sobrava-lhes sofrimento. Ocupou-lhe a mente uma infinidade de emoções, de planos, de amargura; pelo seu corpo corriam fluxos de peso, calor e velocidade desconhecidos; estava tomada de dor, não acreditava guardar forças para manter-se firme. No entanto, não pode dar corpo às suas proposições, e, com os olhos vidrados sobre o rosto vitimado de Jonas, disse: - Arruma as tuas coisas e as de Marta e venham os dois morar em minha casa. – Jonas, tomado de surpresa, não pode sequer fazer uso do conjunto de expressões que havia ensaiado para a cena e, ainda indeciso sobre o sucesso de seu plano, como uma criança obediente, de olhos baixos e agradecidos, beijou as mãos de Matilde e saiu porta a fora.

5 comentários:

Anônimo disse...

Forte e sensível!

Bruno O. Barros disse...

Putz. Muitíssimo bom. Parece extraído das páginas de algum clássico realista russo do século XIX.

Anônimo disse...

Não há como não amar e se apaixonar por um ser que escreve e se expoe de maneira tão sensível, exuberante e inteiro. Te admiro além do universo e de minha alma...

Anônimo disse...

Velho!!

Muito bom mesmo. Mesmo sendo textos curtos, prendem a atenção do início ao fim.

Parabens.

Anônimo disse...
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